Monsieur Ibrahim et les fleurs du Coran



Cerca de 600 mil judeus e 5 milhões de muçulmanos vivem na França atualmente. Conforme cresce o problema na nação ocupada da Palestina, aumenta também o número de ataques em território francês ao povo judeu. Recentemente, a situação teve um desdobramento que causou faíscas entre o antigo primeiro-ministro israelense, Ariel Sharon e o ex-presidente francês, Jacques Chirac, quando o primeiro pediu aos judeus franceses que voltassem imediatamente a Israel devido às ameaças anti-semitas. O problema tem três lados e - como todas as aflições da sociedade moderna - parece muito longe de terminar.
Nenhum lampejo dessa crise, contudo, é mostrado em Uma amizade sem fronteiras (Monsieur Ibrahim et les fleurs du Coran, de Francois Dupeyron, 2003). Sua utilização seria totalmente contrária à esperançosa idéia central desse drama com toques de road movie e homenagens à Nouvelle Vague, que opta por simplesmente ignorar tais diferenças. A trama aposta numa espiritualidade filosófica para ilustrar a história de respeito e entendimento, que mostra como duas culturas tão diferentes poderiam viver em paz.
Omar Sharif vive o personagem que dá o título original do filme, Ibrahim, um grisalho comerciante muçulmano dono de um modesto mercadinho na Paris dos anos 1960. Sua loja fica na Rue Bleu, uma travessa que serve de ponto para prostitutas e eventual cenário para filmes (Isabelle Adjani faz uma ponta como uma estrela inspirada em Brigitte Bardot!), logo em frente à casa do adolescente judeu Momo (Pierre Boulanger). Aos 16 anos, a maior preocupação do jovem é poupar o suficiente para utilizar os serviços das vizinhas - a cena na qual ele perde a virgindade presta homenagem ao clássico
O homem que amava as mulheres, de Truffaut - e ouvir animados rocks no rádio. Ambos fornecem um alívio momentâneo da realidade dura que ele vive ao lado do pai (Gilbert Melki), sempre ausente e taciturno.
Para guardar o dinheiro, Momo tem como hábito roubar pequenos itens da loja do Ibrahim. Um dia, entretanto, o dono do mercado inicia uma conversa com o garoto e revela ser muito mais do que parte da paisagem da loja. Começa uma relação de amizade crescente entre os dois, potencializada quando o garoto é abandonado pelo pai, que culmina numa viagem pelo interior da Turquia.
Uma amizade sem fronteiras cativa por empregar lições filosóficas e espirituais sem sermões, algo que talvez não tivesse sido obtido não fosse à presença de Sharif. O lendário ator, aos 72 anos, continua com o mesmo brilho no olhar que ostentou em filmes como Doutor Jivago e Lawrence da Arábia. Sua irretocável atuação é profunda, cheia de nuances e nada floreada. Parece sem esforço, tranqüila, e deixa crescer seu parceiro - Boulanger -, que caminha lado a lado com a lenda e demonstra grande talento.
Os poucos defeitos do filme se resumem aos segundos finais, um pouco contraditórios, e à sua própria estrutura de filmes sobre lições de vida ensinadas por pessoas mais velhas a jovens sem rumo. Claro que tais produção existem aos montes, mas Uma amizade sem fronteiras destaca-se justamente pela já discutida sensibilidade religiosa, um tanto ecumênica. O resultado traz uma certa esperança, ainda que na vida real ela seja quase utópica...

Nenhum comentário: